terça-feira, 8 de abril de 2014

O romantismo europeu e as raízes da secularização política

Ensaio de filosofia política escrito pelo prof. Marcus Boeira
Link original do artigo:
http://revistaterminal.com.br/?p=2724#note-1

Carl Schmitt dizia que o século XIX representou muitas coisas, dentre as quais uma nova forma de ver o mundo e a história.  A filosofia da história e o senso espiritual do povo europeu resultaram na mudança do paradigma norteador [1]. O cristianismo primitivo, há muito abandonado na prática existencial da sociedade ocidental, passa a ser visto em hodierna perspectiva, ou seja, comparado à modernidade [2]. A imposição do traço comparativo impõe uma revolução nas formas simbólicas e estéticas do imaginário social.  A época das ideologias vinha para ficar e carregava consigo a marca da neutralidade, da ausência de padrões e compromissos, do superávit dos desejos e da anulação dos vínculos. A falta de compromissos atinente ao modernismo provocou a transladação do cristianismo, centro produtor da civilização europeia até então, para um lugar-comum na plateia das tendências, dos modismos e das metas revolucionárias.  Era o cristianismo rebaixado ao andar dos apetites políticos e ideológicos do senso comum. Séculos de Magistério foram depositados nas bibliotecas vazias e o embotamento do patrimônio filosófico escolástico, cada vez mais frequente.

Inversamente, o socialismo e o comunismo surgem como novas religiões políticas que florescem no ardor de uma civilização em decadência. O ano de 1848 representou para a Alemanha não só o clímax político de uma guinada institucional restauracionista das monarquias de divino iure, mas a crença tipicamente germânica de que se estaria a erguer um Império para expandir a cultura revolucionária de vanguarda.

O romantismo entrou porta adentro nos quartos da filosofia da história: o arrombo estético provocado por tamanha secularização do espírito popular acarretou um deslocamento do sentido histórico-espiritual da Europa para o campo dos movimentos políticos e sociais [3].

O paralelismo entre a teologia cristã da história e a filosofia política segundo as novas religiões seculares tornaram o século XX a era da cultura evanescente. Schmitt nos diz, interpretando Donoso Cortés, que Tocqueville estava certo a respeito dos resultados da revolução francesa. Ao invés de promover a liberdade, acabou solidificando ainda mais a centralização burocrática e administrativa do poder civil [4]. O diagnóstico de Schmitt elucida proficuamente o tempo de contrastes que foram os séculos XVIII e XIX. Nessa perspectiva, declaramos que o novecento intensificou ainda mais a polaridade de cosmovisões [5].

Ao mesmo tempo em que o paralelismo teológico-histórico e filosófico político entre o cristianismo e o socialismo apareciam cada vez mais nos castelos ideológicos e nos movimentos de massa, desenvolvia-se um desdobramento paradoxal na cultura: os socialistas querendo tornar o socialismo um “cristianismo realizado na história” e o romantismo, tomando de assalto os corações e as mentes da juventude europeia [6].

A proliferação das ideologias de massas como tentativa de substituir o paraíso cristão pela perfeição burocrática dos Estados Liberais europeus, perfeição advinda com as revoluções e reformas simbolizadas pelo ano de 1848, passava a conviver com a crescente descristianização da sociedade europeia [7].

Se uma autêntica auto-interpretação da sociedade europeia em seu sentido verdadeiro só poderia ser alcançada por uma luz que acabasse com as ideologias e mostrasse a inexorável impossibilidade de uma fusão entre o plano espiritual cristão de salvação e a existência política e social como tal, é necessário admitir que a luz aludida parecia obtusa e indecifrável, ainda que tão somente ela pudesse iluminar as trincheiras divisórias entre o imanente e o transcendente.

Dentro dos padrões culturais do romantismo, o vislumbre do feixe de luz tinha como limite as cercanías estéticas do mundo imaginado, do belo imanentizado pelas categorias sublimes do Espírito absoluto hegeliano. O condicionamento pelos padrões tinha como fronte de ataque a literatura e as artes, embora o quintal interno do projeto romântico tivesse como apoio o castelo de areia das instituições administrativas do Estado, o objeto de consenso de todas as ideologias e, contraditoriamente, o inimigo mortal de todas elas.

A desordem da luz só seria possível mediante o abandono do mundo e o reconhecimento da própria condição existencial, de não ser possível chegar à perfeição nem mudar o mundo à nossa imagem e semelhança. A chave para a luz era não criá-la, mas assumir a inevitabilidade do “paralelismo”. Aceitar que não é possível sacralizar a história representaria, então, ter presente a insuficiência teológica de todas as filosofias políticas da era romântica e abrir-se para o desconhecido. Tal foi a experiência de Donoso Cortés.

Todo paralelismo, se interpretado desde a ótica do socialismo, acarreta uma visão distorcida do cristianismo primitivo. O cristianismo passa a ser contemplado como reacionário e reduzido ao ostracismo. A hostilidade é inevitável, já que conduz a investigação histórica para um sentido que inverte a pedra de toque espiritual, legitimando a nova religião social.

Por outro lado, uma interpretação cristã primitiva e reacionária da história poderá reduzir a totalidade do novo ao banalizado conceito de mal. Todos os mitos históricos são acompanhados de um antagonismo entre o antigo e o novo; porém, é o apreço redutível pelo ocaso histórico e a infalibilidade do novo que conduzem a marcha das ideologias massificadas. A visão triunfante e predestinada do novo mundo coteja o núcleo da existência histórica segundo o paralelismo: se primitivo, o sentido é dirigido para o imutável; se novo, para a própria história, em sua marcha redentora [8].

O paralelismo é o ponto de partida para o entendimento dos acontecimentos políticos da era moderna, uma idade marcada pela crescente centralização das funções políticas na burocracia administrativa e pelo fortalecimento do Estado, local do encontro entre a teologia da história e a filosofia política.

No terreno político, a florescente cultura democrática, reivindicatória dos “anseios populares”, assistiu à diluição das camadas populares no poder. A substituição do voto censitário pelo sufrágio universal, de fato, não resultou na participação real e concreta do povo no poder, mas no contrário. A cultura de massas foi sopesada pelo crescimento do Estado, pela ampliação das áreas sujeitas à intervenção estatal.

O espírito absoluto da filosofia da história de Hegel tinha, no Estado, sua representação pormenorizada. O grande paralelismo era dissolvido para dar vazão ao secularismo em todas as esferas da existência social. A teologia da história era reduzida à filosofia política, provocando o irrompimento da teologia política.

Definitivamente, o Estado substituía a Deus e passava a ocupar o coração da existência espiritual da civilização europeia. A cultura democrática, enquanto anunciava a redenção do homem-livre, escravizava-o ainda mais na medida em que passou a usá-lo para legitimar a centralização do poder. Em perspectiva comparada, enquanto Deus distribuía graça e misericórdia ao homem na cultura de outrora, o Estado distribuía encargos, obrigações e deveres políticos, sob o prisma de carregar a espécie humana para o “progresso” e a “evolução”.

O próprio retrato do estado de coisas nesses termos já denota um tipo de condicionamento que a cultura moderna – diríamos, modernista – impôs ao observador no trato com a história. Separá-la em duas idades ocidentais bem definidas, colocando Deus na primeira e o Estado, na segunda.

Não mais a Igreja, nem as dinastias, nem as cortes, nem mesmo os mitos, mas o próprio povo era quem legitimava o soberano. Da mesma maneira como a Igreja era a representação espiritual de Deus na história, o povo agora ocupava o posto de representar o seu deus, o Estado.

No mundo ocidental europeu a erosão provocada na consciência histórica do povo pelo paralelismo (sobretudo durante o século XIX) potencializou a expansão de alguns Impérios, especialmente àqueles em que a teologia política era o semblante de ouro, ou seja, cuja estrutura institucional era caracterizada pela unidade eclesiástica e estatal.

Para Schmitt, uma visão realista e completa da luta ideológica de 1848 e do paralelismo assinalado exige que tomemos Donoso Cortés como peça-chave e como princípio de estrutura de nosso imaginário a respeito. Sem a análise de sua obra, faltaria um ingrediente substancial que, frente à situação dada, só poderia ser extraído da alma da Espanha.

Schmitt afirma que, ante a progressiva democratização social e centralização política, assistia-se à ilusão de “se associar o progresso da técnica ao da liberdade e ao da perfeição moral da humanidade, criando assim um conceito uniforme de progresso” [9].

As experiências de 1848 não condicionaram a imagem que Cortés tinha do paralelismo; antes, conservaram-lhe a fé e, do ponto de vista histórico, obrigaram-no a uma visão escatológica, que mantinha a autonomia dos dois planos, sem os fundir. As sínteses indesejadas das ideologias não ecoavam na consciência de nosso varão espanhol. Donoso Cortés foi, sim, um homem do século XIX. Mas um espanhol, católico, que não fundia o espiritual com o temporal, nem almejava qualquer transfiguração na história da humanidade que não fosse empregada pelo próprio Cristo. Como diz Schmitt, “sua visão da história se tornou escatológica, sem negar um conceito de história” [10].

Ainda que estivesse distante da Alemanha e da França e não conhecesse a teologia clássica nem o pensamento de Hegel, Cortés levou tão à sério o paralelismo que concluiu ser a pseudo-religião da humanidade absoluta o princípio de um caminho que conduziria ao terror inumano [11].

A partir da constatação do paralelismo e dos rumos da religião secular, Donoso profetizou o cataclismo totalitário que assaltou a Europa nas décadas vindouras. A concepção absolutista de humanidade presente no secularismo do novecento foi contraposta pelo autor por uma antropologia sedimentada em um mergulho profundo nos abismos da natureza humana: Donoso não quis, como seus contemporâneos franceses e alemães, modificar a natureza humana, mas enfrentar sua dura realidade tensional, contraditória, assumindo sua crua nudez. A constatação de que o homem novo do socialismo estava muito distante do homem de carne e osso, que combate nas trincheiras e que se revolta contra todos aqueles que não se submetem à ele, o impelira à denúncia antropológica dos erros e fracassos do progressismo tout court, tão distante do caráter inumano da nova espécie humana.

Para o antologista espanhol, todo homem carrega em sua ontologia uma carga de inumanidade. Todavia, o humano para a nova religião não é sopesado pelo que possui de inumano, mas tomado como realização plena de seu fim espiritual. A antropologia da nova era acalenta uma visão distorcida da realidade potencial da humanidade, pois ao encurtar as distâncias do paralelismo é obrigada a tomar o homem perfeito como objeto de sua filosofia prática. É daí que nasce o ideal de super-homem concebido por Nietzsche. O super-homem é o tipo completo de ser humano, àquele que atualizou todas as suas potencialidades e que carrega em sua natureza todas as dimensões da beatitude. Em oposição a isso, Donoso chamaria a atenção para o lado desconhecido do super-homem, àquele onde o protótipo do santo traz consigo o infra-homem, a opacidade de suas entranhas vulneráveis.

Segundo Schmitt, “não foram sem amigos nem seus inimigos que compreenderam a Donoso. Unicamente seus inimigos socialistas, inspirados em uma autêntica hostilidade, quando atacaram algo de sua verdadeira grandeza” [12].

O ataque provinha revestido de uma reação peculiar: é que tão logo identificaram que Donoso tivesse decifrado a inevitabilidade do paralelismo, viram-no como ameaça. E a ameaça tinha endereço: os socialistas monopolizaram a interpretação decimonônica da natureza teológica do poder ao proporem a legitimação do político pelo próprio poder, ou seja, ao projetarem a teofania do movimento religioso secular destinado a transformar o mundo e pô-lo no universo imaginado pelo romantismo: o paraíso terreno, local do encontro entre as potências subjetivas do humano e a realidade transfigurada do mundo perfeito.

O caráter profético desse “reacionário, meio louco” se fizera sentir nos ardores do século XX, sob a forma dos regimes totalitários.

Segundo Schmitt, o paralelismo anunciado no século XIX acarretaria para o século XX, de acordo com Cortés, a necessidade da escolha entre duas saídas: de um lado, o socialismo, crente na fusão; de outro, o reacionarismo, nos moldes propagados por De Maistre, Bonald e pelo próprio espanhol.

Nessa dialética de opostos, De Maistre proporia uma solução sui generis: o ato de decisão. A decisão tornaria cada plano irredutível. No mundo político, a decisão promove a soberania, enquanto nas coisas espirituais, infalibilidade. Em suma, o ato de decisão na ordem estatal carrega o Estado de Soberania. O ato de decisão na ordem espiritual é infalível, a saber, sua essência é o fato de ser inapelável.

A existência da autoridade pública reside na decisão. Sendo a decisão um traço característico da filosofia contrarrevolucionária do século XIX, é dela o imperioso ato de manter “cada qual no seu quadrado”.

O paralelismo, assim, via-se diante de três caminhos (e não apenas dois): fusão, tradição e reconhecimento. A fusão, enquanto caminho preferido pelo socialismo. A tradição, pelos contrarrevolucionários. E o reconhecimento, pelo liberalismo constitucional.

Como se viu, as tentativas de conservar ou transfigurar os dois primeiros caminhos resultaram em armadilhas à liberdade política e civil. A opção pelo terceiro parece, do ponto de vista institucional, a saída mais convincente. Nesses termos, preparam-se instituições democráticas e regidas pelas Constituições. Porém, na tensão entre o Estado de Direito e o Estado de exceção, exige-se um controle permanente do próprio Estado, para que ele funcione e promova o bem comum. A delimitação do campo de atuação estatal, nesse novo cenário do liberalismo constitucional, não pode ser desacompanhada da delimitação exigida para o campo de ação dos inimigos do Estado de Direito. O risco sempre presente de que a legalidade seja conquistada e os inimigos sejam “legitimados” como amigos do Estado, poderá acarretar a transformação do que é ilegal em legal e do que é legal, em ilegal. Em suma, haverá sempre o risco de que os amigos da liberdade se transformem em inimigos do Estado!


Notas:

1 - SCHMITT, Carl. Romanticismo Político. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2001, p. 63 e seguintes.

2 - Taylor nos diz que em um sentido, “a secularidade consiste no abandono de convicções e práticas religiosas, em pessoas se afastando de Deus e não mais frequentando a igreja. Nesse sentido, os países da Europa ocidental tornaram-se majoritariamente seculares – até mesmo aqueles que mantêm vestígios de referência a Deus no espaço público”. TAYLOR, Charles. Uma Era secular. 1ª ED. São Leopoldo: editora Unisinos, 2010, p. 15.

3 - VOEGELIN, Eric. Gnostic Politics. Democracy in the New Europe, in Collected works of Eric Voegelin, Volume 10 – Published essays (1940-1952). Columbia: University of Missouri Press, 2000, p. 223 e seguintes.

4 - TOCQUEVILLE, Alexis de. Lembranças de 1848. 1ª ed. São Paulo: Cia das letras, 2011.

5 - SCHMITT, Carl. Interpretación Europea de Donoso Cortés. 1ª ed. Buenos Aires: 2006, p. 13 e 14.

6 - Para um panorama geral de fundo sobre a cultura do período, sugerimos a leitura da obra Os Demônios, de Fiodor Dostoievski. DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os Demônios. Trad. Paulo Bezerra. 1ª ed. São Paulo: editora 34, 2004.

7 - VOEGELIN, Eric. Democracy in the New Europe. Democracy in the New Europe, in Collected works of Eric Voegelin, Volume 11 – Published essays (1953-1965). Columbia: University of Missouri Press, 2000, p. 59 e seguintes.

8 - Nesse sentido, ver BERLIN, Isaiah. A Força das Idéias. 1ª ed. São Paulo: Cia das letras, 2005, p. 44 e seguintes.

9 - SCHMITT, Carl. Interpretación Europea de Donoso Cortés. Op.Cit, p. 30.

10 - Op.Cit., p. 35.

11 - Op.Cit., p. 38.

12 - Op.Cit., p. 42.

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