quarta-feira, 16 de julho de 2014

O liberalismo aristocrático e o liberalismo de esquerda por Julius Evola


Resulta sumamente sintomático e humorístico o facto de que hoje em dia se considere o liberalismo como uma doutrina de Direita quando em épocas anteriores os homens da Direita viram-no como um ardil, como uma força subversiva e desagregadora, da mesma maneira que na actualidade – os mesmos liberais – vêem o marxismo e o comunismo. Com efeito, a partir de 1848, o liberalismo, o nacionalismo revolucionário e a ideologia maçónica anti-tradicional, aparecem na Europa como fenómenos estritamente vinculados entre si e é sempre interessante revisitar os antigos exemplares da publicação Civilitá Católica para ver como esta se expressava relativamente ao liberalismo daquela época.

Mas nós deixaremos de lado tal circunstância para fazer uma breve menção, necessária para os nossos fins, em relação às origens do liberalismo. É sabido que tais origens há que procurá-las em Inglaterra, e pode dizer-se que os antecedentes do liberalismo foram feudais e aristocráticos: há que fazer referência a uma nobreza local zelosa dos seus privilégios e das suas liberdades, a qual, desde o Parlamento, tratou de defender-se de qualquer abuso da Coroa. Depois, simultaneamente com o avanço da burguesia, o liberalismo reflectiu-se na ala Whig do parlamento, opondo-se aos conservadores, os Tories. Mas há que referir que o partido desenvolveu a função de “oposição orgânica”, mantendo-se firme a lealdade face ao Estado, de tal modo que pôde falar-se em His Majesty’s most loyal opposition (a lealíssima oposição de Sua Majestade). A oposição exercia no sistema bi-partidário uma simples função de freio e controlo.
O factor ideológico de esquerda não penetrou no liberalismo senão num período relativamente recente, e não sem relação com a primeira revolução espanhola, de tal modo que a designação originária dos liberais foi a espanhola, é dizer, “liberales” (e não “liberals”, como em inglês). E é aqui que começa o declive. Deve ressaltar-se, pois, que o primeiro liberalismo inglês teve um carácter aristocrático: foi um liberalismo de gentleman, isto é, um liberalismo de classe. Não se pensou em liberdades que qualquer um pudesse reivindicar indistintamente. Subsiste ainda hoje em Inglaterra este aspecto são e, no fundo, apolítico do liberalismo: o liberalismo não como uma ideologia político-social, mas como a exigência de que, para além da forma particular do regime político, o sujeito possa gozar de um máximo de liberdade, que a esfera da sua “privacy”, da sua vida pessoal privada, seja respeitada e seja evitada a intromissão de um poder estranho e colectivo. Desde o ponto de vista dos princípios este é um aspecto aceitável e positivo do liberalismo que deveria diferenciá-lo da democracia, pois que na democracia o momento social e colectivista predomina sobre o da liberdade individual.
Mas aqui achamo-nos também perante uma mudança de direcção, posto que um liberalismo generalizado e indiscriminado, ao assumir vestimentas ideológicas, fundiu-se no continente europeu com o movimento iluminista e racionalista. Alcançou aqui o primeiro plano o mito do homem que, para ser livre e verdadeiramente fiel a si mesmo, deve desconhecer e recusar toda a forma de autoridade, deve seguir somente a sua razão, não deve admitir outros vínculos para além dos extrínsecos, os quais devem ser reduzidos ao mínimo, pois, ainda assim, sem eles nenhuma vida social seria possível. Em tais termos o liberalismo converteu-se em sinónimo de revolução e de individualismo (mais um passo e chega-se à ideia de anarquia). O elemento primeiro é visto no indivíduo, no sujeito. E aqui são introduzidas duas pesadas consequências sob a direcção daquilo que Croce denominou a “religião da liberdade” mas que nós denominaríamos melhor como fetichismo da liberdade.
A primeira consequência é que o indivíduo já se encontra “ evoluído e consciente” e portanto capaz de reconhecer por si mesmo ou de criar qualquer valor. A segunda é que do conjunto dos sujeitos humanos deixados em estado de total liberdade (laissez faire, laissez aller) possa surgir de maneira milagrosa uma ordem sólida e estável: haveria que recorrer à concepção teológica de Leibniz da denominada “harmonia preestabelecida” (pela Providência), de modo tal que, para usar uma comparação, ainda que as engrenagens do relógio funcionassem cada uma por sua conta, o relógio no seu conjunto marcaria sempre a hora exacta. A nível económico, do liberalismo deriva a “economia de mercado” que pode descrever-se como a aplicação do individualismo ao campo económico-produtivo, afectado por uma idêntica utopia optimista a respeito de uma ordem que nasce por si mesma e que é capaz de tutelar verdadeiramente a proclamada liberdade (bem sabemos onde vai parar a liberdade do mais fraco num regime de piratagem e concorrência desenfreada, tal como acontece nos nossos dias, não só entre indivíduos, mas também entre nações ricas e pobres). O espectáculo que hoje nos mostra o mundo moderno é um cru testemunho da arbitrariedade dessas posições.
Chegados a este ponto podemos tirar algumas conclusões. O liberalismo ideológico nos termos recém mencionados é evidentemente incompatível com o ideal de um verdadeiro Estado de Direita. Não pode aceitar-se a premissa individualista, nem a fundamental recusa de todo o tipo de autoridade superior. A concepção individualista tem um carácter inorgânico; a pretensa reivindicação da dignidade do sujeito resulta, no fundo, num menosprezo da mesma através de uma premissa igualitária e niveladora. Assim, nos tempos mais recentes, o liberalismo não colocou qualquer objecção ao regime do sufrágio universal da democracia absoluta, onde a paridade de qualquer voto, que reduz a pessoa a um simples número, é uma grave ofensa ao indivíduo no seu aspecto pessoal e diferenciado. Logo, em matéria de liberdade, descuida-se a distinção essencial entre a liberdade face a algo e a liberdade para algo ( isto é, para fazer algo). Tem muito pouco sentido a manifestação de zelo a respeito da primeira liberdade, da liberdade externa, quando não se sabem indicar ideais e fins políticos superiores em função dos quais o uso da mesma adquira um verdadeiro significado. A concepção básica de um verdadeiro Estado, de um Estado de Direita, é “orgânica” e não individualista.
Mas se o liberalismo, remetendo-se à sua tradição pré-ideológica e pré-iluminista, se limitasse a preconizar a maior liberdade possível da esfera individual privada, a combater toda a abusiva ou desnecessária intromissão na mesma dos poderes públicos e sociais, se o mesmo servisse de obstáculo às tendências “totalitárias” em sentido negativo e opressivo, se defendesse o princípio de liberdades parciais (se bem que o mesmo deveria defender também a ideia de corpos intermédios, dotados justamente de autonomias parciais, entre o vértice e a base do Estado, que levaria a um corporativismo), se estivesse disposto a reconhecer um Estado omnia potens, mas não omnia facens (W.Heinrich), isto é, que exerce uma autoridade superior sem intrometer-se por todo o lado, a contribuição “liberal” seria positiva. Em especial, se levamos em conta a actual situação italiana, poderia ser também positiva a separação, propugnada pelo liberalismo ideológico, da esfera política face à eclesiástica, sempre que isso não signifique a laicização materialista da primeira. Contudo, aqui encontrar-se-ia um obstáculo insuperável, já que o liberalismo tem uma fobia a tudo o que possa assegurar à autoridade estatal um fundamento superior e espiritual e professa um fetichismo pelo denominado “Estado de direito”: isto é, um Estado da legalidade abstracta, como se a legalidade existisse por fora da História, e como se o Direito e a Constituição caíssem do céu e com um carácter de irrevocabilidade.
O espectáculo da situação a que conduziu a partidocracia neste regime de massas e de demagogia deveria fazer-nos reflectir sobre a antiga tese liberal ( e democrática) de que o pluralismo desordenado dos partidos seja garantia verdadeira de liberdade. E a respeito da liberdade reivindicada a qualquer preço e em qualquer plano, por exemplo no da cultura, seria necessário fazer hoje em dia uma série de precisões oportunas, se é que não se quer que tudo entre em colapso de forma acelerada. Hoje em dia pode ver-se muito bem de que coisas o homem moderno, convertido finalmente em “adulto e consciente” (de acordo com o liberalismo e a democracia progressista), se tornou capaz com a sua “liberdade”, a qual resultou muitas vezes na produção de vírus ideológicos e culturais que estão conduzindo à dissolução toda uma civilização.
Mas a esse respeito o discurso seria demasiado longo e tirar-nos-ia do marco da nossa análise. Supomos que com estas notas, ainda que de maneira extremamente sumária, foi colocado em evidência desde o ponto de vista da Direita tudo aquilo que de positivo e negativo possa apresentar-nos o liberalismo.

Julius Evola, Il Borghese, 10-10-1968

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