quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O sentido Secreto – Isaac Asimov (1941)



“Os Marcianos não possuíam paladar e a sua audição não era das melhores; possuíam, no entanto, um sentido secreto que só a eles pertencia”.

A cadenciada melodia da valsa de Strauss preenchia o ambiente. A música seguia, aumentando e diminuindo, acompanhada pelos gestos ritmados dos dedos de Lincoln Fields que, através de seus olhos semicerrados, quase podia vislumbrar as silhuetas de elegantes dançarinos a rodopiar sobre o piso encerado de um luxuoso salão.

A música sempre o afetara daquela forma, enchendo a sua mente com sonhos da mais pura beleza e transformando sua sala num paraíso sonoro. Seus dedos habilidosos mais pareciam bailarinos a dançar sobre as teclas do piano, produzindo a mais saborosa combinação de tons e melodias. Até que por fim, relutantes, diminuíram seu ritmo, até se aquietarem por completo.

Ele suspirou e, por um curto período de tempo, permaneceu no mais absoluto silêncio, como se almejasse extrair a essência da beleza dos sons que ainda ecoavam no ar, desvanecendo pouco a pouco. Virou-se em seguida para o outro ocupante da sala, sorrindo-lhe levemente.

Garth Jan sorriu de volta, mas nenhuma palavra saiu de sua boca. Sustentava grande estima por Lincoln Fields, fato de sobremodo inexplicável. Eles pertenciam literalmente a mundos distintos, Garth vinha das gigantescas cidades subterrâneas de Marte, enquanto Fields era fruto do alastramento incontrolável da Nova York Terrestre.

“O que achou, Garth meu velho amigo?” perguntou Fields receoso.

Garth balançou a cabeça. Falou, então, da forma precisa e meticulosa que lhe era costumeira, “Ouvi atentamente e posso, verdadeiramente, assumir que não foi de todo desagradável. Possuía certo ritmo, era cadenciado, de fato, um tanto penetrante. Mas belo? Acredito que não!”

Havia compaixão nos olhos de Fields — uma compaixão quase dolorosa de tão intensa. O Marciano encontrou o olhar fixo e estupefato do Terráqueo e rapidamente compreendeu de todo o seu significado, contudo, não demonstrou inveja alguma diante da situação. Sua gigantesca estrutura óssea permaneceu acomodada na pequena cadeira, que claramente não fora projetada para comportar alguém com as suas dimensões, enquanto balançava a sua perna esguia para frente e para trás.

Levantando-se bruscamente, Fields arremeteu sobre seu colega e agarrou-o pelo braço. “Aqui! Sente você mesmo no banco.”

Garth obedeceu cordialmente. “Vejo que pretende realizar um pequeno experimento aqui.”

“Acertou. Li alguns trabalhos científicos que tentavam explicar as diferenças sensoriais entre os Terráqueos e os Marcianos, mas nunca fui capaz de compreendê-las completamente.”

Fields tocou as notas Dó e Fá, uma em seguida da outra numa mesma oitava e encarou o Marciano, cheio de expectativas.

“Se há alguma diferença”, arriscou Garth, incerto, “é quase insignificante. Se eu estivesse distraído e ouvisse ambas as notas ao acaso, certamente diria que você tocou a mesma tecla duas vezes.”

“Como assim?” Perguntou o Terráqueo descrente, pressionando em seguida um Dó e um Sol.

“Desta vez eu confesso que percebi alguma diferença,” Disse Garth.

“Bem, suponho, então, que tudo o que dizem a respeito do seu povo seja verdade. Compadeço-me de vocês por possuírem tão primitiva sensibilidade. Mal sabem o que estão perdendo.”

O Marciano deu de ombros, fatalista. “Não se pode perder o que nunca se possuiu.”

Garth Jan rompeu o curto silêncio que se seguiu. “Acaso não percebe que este é o primeiro período na história em que duas raças inteligentes são capazes de se comunicar entre si? A comparação entre as habilidades sensitivas de ambos é interessantíssima e pode, até mesmo, ampliar a nossa percepção sobre a vida.”

“Está certo,” concordou o Terráqueo, “entretanto, parece que temos toda a vantagem nessa comparação. No mês passado um biólogo Terrestre afirmou estar maravilhado com o fato de uma raça praticamente desprovida de habilidades perceptivas e sensoriais, ser capaz de desenvolver uma civilização tão grandiosa quanto à de vocês.”

“Tudo é relativo, Lincoln. O que temos nos é suficiente.”

Fields sentia a sua frustração crescendo. “Mas se você soubesse, Garth, se apenas soubesse o que está perdendo.”

“Você nunca viu a beleza do pôr do sol,” continuou o Terráqueo, “ou os campos, repletos de flores a dançar sob o vento. Você nunca admirou o azul do céu, o verde da grama, o amarelo do milho. Pra você o mundo consiste em tons escuridão e luz,” Lincoln estremeceu com o pensamento. “Você não pode sentir o cheiro de uma flor ou apreciar o seu delicado perfume. Nem mesmo uma coisa simples você pode fazer, como saborear uma refeição saudável. Você não sente, não cheira, tampouco diferencia as cores. Sinto pena pelo mundo enfadonho no qual você está condenado a viver.”

“O que você está dizendo é insignificante, Lincoln. Não gaste sua compaixão comigo, desejando que eu seja tão feliz quanto você.” Ele levantou e alcançou sua bengala, mais do que necessária no gigantesco campo gravitacional da Terra.

“Sabe, você não deveria nos julgar assumindo-se de sobremodo tão superior.” Aquilo soou como um algo que realmente o incomodava. “Nós não ostentamos certas habilidades da nossa raça, habilidades das quais vocês nada entendem.”

Então, como que profundamente arrependido de suas palavras, uma expressão deformada tomou conta do seu rosto e ele se pôs a caminhar rumo à porta.

Fields pareceu confuso e pensativo por um momento e então, pulando do seu acento, correu atrás do Marciano que já se punha em direção à saída. Agarrando-o pelo ombro, insistiu para que ele retornasse.

“O que quis dizer com a sua última observação?”

O Marciano virou o rosto, incapaz de encarar o seu inquisidor. “Esqueça, Lincoln. Foi apenas um momento de indiscrição quando a sua compaixão desnecessária me deu nos nervos.”

Fields dirigiu-lhe um olhar de esguelha. “É verdade, não é? É perfeitamente lógico que os Marcianos possuam sentidos que os Terráqueos não possuem, mas o que não consigo conceber é a razão pela qual seu povo deveria manter isso em segredo.”

“As coisas são como devem ser. Mas agora que você descobriu o segredo, graças a minha completa estupidez, talvez concorde em manter tudo isso entre nós.”

“Mas é claro! Minha boca é um túmulo. Que eu seja amaldiçoado se quebrar essa promessa. Mas me diga, qual seria a natureza desse sentido secreto que vocês possuem?”

Garth Jan deu de ombros. “Como posso explicar? Você seria capaz de definir uma cor para mim, alguém incapaz, tanto de conceber, quanto de compreender essa espécie de estímulo visual?”

“Não estou pedindo por uma definição. Fale-me sobre os seus usos, por favor,” ele agarrou os ombros do colega, “pode confiar em mim, eu te dei a minha palavra de que manteria tudo em segredo.”

O Marciano suspirou profundamente. “Isso não vai te fazer muito bem. Você ficaria satisfeito em saber que, se me mostrasse dois copos, ambos preenchidos com um líquido transparente, eu seria capaz de afirmar de uma só vez se algum deles fosse venenoso? Ou se me mostrasse um fio de cobre, eu poderia dizer instantaneamente se uma corrente elétrica estivesse passando por ele, mesmo se fosse mil vezes menor que um ampare. Ou eu poderia te dizer a temperatura de qualquer substância com três graus de margem de erro para seu o valor real, mesmo que você a mantivesse a cinco metros de mim. Ou então eu poderia, bem, acho que já falei demais.”

“Isso é tudo?” quis saber Fields, meio decepcionado.

“O que mais você queria?”

“Tudo o que você descreveu é realmente muito útil, mas onde esta a beleza? Seu estranho sentido não agrega valor ao espírito? Ou atende tão somente às necessidades do corpo?”

Garth Jan moveu-se, impaciente. “É sério, Lincoln, você está falando tolices. Eu apenas respondi à sua pergunta, dando-lhe as informações que me pediu, ou seja, os usos a que servem o meu sentido. Em momento algum me propus a explicar a sua natureza. Tomemos como exemplo, a sua habilidade em distinguir cores. Ao que me parece, seu único uso consiste em fazer algumas distinções das quais eu não sou capaz. Vocês conseguem identificar certas soluções químicas, por exemplo, graças a uma característica a qual chamam cor, enquanto eu seria obrigado a recorrer a uma análise química. Onde está à beleza nisso?”

Fields abriu sua boca para falar, mas o Marciano fez-lhe um sinal com irritação para que permanecesse em silêncio. “Eu sei, eu sei. Você estava prestes a balbuciar alguma bobagem sobre o por do sol, ou algo parecido. Mas o que você sabe sobre beleza? Acaso você já conheceu a beleza de um fio de cobre desencapado quando nele uma corrente AC é ligada? Você já sentiu a delicada graciosidade de correntes induzidas estabelecidas num solenoide quando um imã passa através dele? Você por acaso já assistiu a um portwem Marciano?”

Os olhos de Garth Jan se quedaram enevoados com os pensamentos que havia conjurado. Fields, imobilizado, o encarava estupefato, seu mundo estava no avesso e seu senso de superioridade havia desaparecido num piscar de olhos.

“Cada raça possui seus atributos,” murmurou Fields com um fatalismo mesclado a não muito mais que uma pequena dose de hipocrisia, “mas não vejo razão pela qual manter tamanho segredo sobre o assunto. Nós, os Terráqueos, por exemplo, não mantivemos nada em segredo diante da sua raça.”

“Não nos acuse de ingratidão,” exclamou Garth Jan veementemente. De acordo com o código de ética Marciano, a ingratidão era a falha suprema de caráter, de forma que, ao insinuar tais coisas, o Terráqueo fizera com que Garth perdesse de vez as estribeiras. “Nós, Marcianos, nunca agimos sem razão. E certamente não é para a nossa própria causa que escondemos a nossa habilidade magnífica.”

O Terráqueo sorriu zombeteiro. Ele estava na trilha de alguma coisa grande, podia sentir nos seus ossos, e a única maneira de descobrir do que se tratava, era provocando-o.

“Não tenho dúvidas de que haja nobreza por detrás das suas ações. É uma estranha qualidade da sua raça, que vocês sempre consigam encontrar razões altruístas para justificar seus atos.”

Garth Jan mordeu seus lábios, irritado. “Você não tem o direito de dizer isso.” Por um instante ele cogitou a sua preocupação com a futura paz de espírito de Fields como uma razão para manter silêncio, mas aquela última troça sobre altruísmo inviabilizou tal possibilidade. Um sentimento de raiva se alastrou progressivamente por todo o seu corpo, forçando a sua decisão.

Não havia como confundir o tom nada amigável que tomou conta da sua voz naquele momento. “Explicarei através de uma analogia.” O Marciano seguiu em frente, passando pelo colega conforme as palavras saiam de sua boca, os olhos semicerrados.

“Você me disse que vivo num mundo composto, simplesmente, de tons de escuridão e luz. Tentou, ainda, descrever o seu mundo, repleto de variedade e beleza. Eu ouvi a tudo isso sem, entretanto, me interessar muito. Nunca conheci algo assim e nunca conhecerei. Não se pode perder a posse de algo que nunca se possuiu.”

“Mas,” ele continuou, “e se você fosse capaz de, por alguns minutos, me conceder a habilidade de ver e perceber as cores? E se, durante cinco minutos, eu descobrisse todas as maravilhas e toda a beleza deste dom? E se depois destes cinco minutos eu fosse obrigado a abrir mão desta dádiva para sempre? Teriam estes cinco minutos de paraíso valido a pena diante de uma vida inteira de arrependimento, uma vida de insatisfação por causa da minha deficiência? Não teria sido um ato de gentileza nunca me falar sobre as cores em primeiro lugar e então, subitamente, me privar da sua beleza para sempre?”

Fields pôs-se de pé durante a última parte do discurso do Marciano e então os seus olhos arregalaram num desejo selvagem. “Você quer dizer que os Terráqueos podem possuir o sentido dos Marcianos se assim desejarem?”

“Por cinco minutos durante toda a sua vida,” os olhos de Garth Jan se tornaram turvos em seus devaneios, “e durante os cinco minutos o sentido…”

Parou de repente, confuso, e olhou para o seu companheiro, “Você já sabe mais do que deveria. Não se esqueça da sua promessa.”

Ele se levantou apressado e, apoiando-se pesadamente na bengala, dirigiu-se novamente em direção à saída. Lincoln Fields não fez menção de tentar impedi-lo. Ele simplesmente se sentou e pôs-se a pensar.



O teto distante da caverna permanecia envolto em névoas obscuras enquanto por lá, a intervalos regulares, flutuavam globos luminescentes de radiação. A brisa aquecida pelo extrato vulcânico subterrâneo soprava gentilmente e Lincoln, por sua vez, percorria uma extensa avenida pavimentada observando a paisagem da cidade mais importante de Marte desvanecer à distância em meio à neblina.

Postou-se, então, desajeitadamente diante da casa de Garth Jan. As solas de seis polegadas de chumbo presas aos seus pés, por sua vez, continuavam causando-lhe aborrecimento. Lincoln sabia, no entanto, que aquela ainda era a melhor forma de conviver com as limitações que a gravidade reduzida do planeta impunha aos seus músculos terrestres.

O Marciano ficou surpreso em ver seu amigo, mas não de todo feliz por fazê-lo. Fields não pôde deixar de notar a reação, mas limitou-se a sorrir para si mesmo. Uma vez concluídas as saudações e finalizadas as demais formalidades, sentaram-se ambos.

Fields esmagou o cigarro no cinzeiro e endireitou-se, sério, em seu acento. “Vim pedir-lhe que me dê aqueles cinco minutos que me prometeras. Poderei eu tê-los?”

“Trata-se de uma pergunta retórica? Pois, parece-me não necessitar de uma resposta.” Expôs Garth com desdém.

O Terráqueo refletiu sobre as palavras do amigo. “Você se importaria se eu expusesse o meu posicionamento em poucas palavras?”

“Saiba que não fará a menor diferença,” disse o Marciano sorrindo indiferente.

“Vou arriscar mesmo assim. A situação é a seguinte: Fui nascido e criado em meio ao luxo e fui repugnantemente mimado. Até hoje não tive desejo algum que, dentro das possibilidades, não me tenha sido saciado. Assim sendo, não sei como é não ter aquilo o que quero. Está vendo?”

Não houve resposta e ele continuou, “Eu encontrei a minha alegria em lindas paisagens, belas palavras e sons deslumbrantes. Criei um verdadeiro culto à beleza. Em uma palavra, sou um esteta.”

“Muito interessante,” a expressão austera do Marciano permaneceu inflexível, “mas o que exatamente tudo isso tem a ver com o problema que temos em mãos?”

“Apenas isso: Você fala sobre uma nova forma de beleza, uma forma desconhecida para mim, até mesmo inconcebível, mas que eu poderia experimentar, caso o desejasse. A ideia me atrai, estabelece em mim uma necessidade. Lembrando novamente, sempre que uma ideia cria em mim um desejo, eu cedo… E eu sempre consigo aquilo o que quero.”

“Neste caso você não está no controle da situação,” lembrou Garth Jan. “Sei que é cruel da minha parte lembrá-lo, mas você não pode me forçar a fazê-lo, sabe disso. Suas palavras, de fato, são quase ofensivas em suas implicações.”

“Estou feliz que tenha dito isso, pois, me permite ser também cruel sem ofender a minha consciência.”

Garth Jan respondeu com uma careta de autoconfiança.

“Eu exijo que me conceda aquilo o que desejo,” disse Fields vagarosamente, “em nome da gratidão”.

“Gratidão?” o Marciano exclamou violentamente.

Fields abriu um largo sorriso, “É um apelo ao qual nenhum Marciano honrado, segundo a sua própria ética, poderia recusar. Deve-me gratidão, pois foi através de mim que obteve acesso aos maiores e mais honoráveis homens da Terra.”

“Eu sei disso,” Garth Jan corou irritado. “É indelicado da sua parte lembrar-me desta dívida.”

“Eu não tive escolha. Você reconhece que me deve gratidão por tudo o que fiz. À vista disso, exijo que me dê a chance de possuir esse misterioso sentido que tanto mantém em segredo. É claro, em nome da gratidão que você mesmo reconhece ter para comigo. Poderia você recusar agora?”

“Você sabe que eu não posso,” foi uma resposta sombria. “Eu hesitei para o seu próprio bem.”

O Marciano se levantou e apertou a sua mão solenemente, “Você me tem em suas mãos, Lincoln. Está feito. Não lhe devo mais nada, no fim das contas. Isso tratará de quitar a minha divida de gratidão. Combinado?”

“Combinado!” Os dois apertaram as mãos e Lincoln Fields continuou num tom completamente diferente. “Continuamos amigos, certo? Esta pequena discussão não estragará as coisas entre nós, não é mesmo?”

“Eu espero que não. Vamos! Junte-se a mim hoje à noite para um jantar e então poderemos discutir o local e a hora para os seus… hum, cinco minutos.”

Lincoln Fields estava se esforçando ao máximo para conter a ansiedade e o nervosismo enquanto aguardava na sala de concertos particular de Garth Jan. Deu-se conta, de repente, de que estava se sentindo exatamente como costumava se sentir em uma sala de espera aguardando pela sua vez de ser atendido pelo dentista. Tal ideia trouxe-lhe um riso sincero aos lábios.

Ele acendeu o seu décimo cigarro, deu duas tragadas e jogou-o fora. “Você deve estar planejando algo complexo, Garth,” resmungou o Terráqueo.

O Marciano deu de ombros, “Você só tem cinco minutos, por isso prefiro ter certeza de que serão utilizados da melhor maneira possível. Você irá ‘ouvir’ parte de um portwem, algo que está para os nossos sentidos, assim como a Grande Sinfonia (é esse o nome, correto?) está para a sua audição.”

“Ainda falta muito tempo? Todo esse suspense está me matando.”

“Nós estamos esperando por Novi Lon, que ira tocar o portwen, e por Done Vol, meu físico particular. Eles já devem estar chegando.”

Fields observou com grande interesse o baixo estrado que repousava no centro da sala, logo acima da qual repousava um intrincado mecanismo. A parte da frente era revestida em alumínio reluzente, deixando expostas apenas sete níveis de teclas, além de cinco grandes pedais brancos logo abaixo. A parte de trás do objeto, por sua vez permanecia aberta, revelando um conjunto de fios que se cruzavam, iam e voltavam numa serie de intrincados padrões.

“Um objeto bastante curioso, este aqui,” comentou o Terráqueo.

O Marciano juntou-se a ele no estrado, “Trata-se de um instrumento caríssimo. Custou-me cerca de dez mil Créditos Marcianos.”

“E como ele funciona?”

“Não é tão diferente de um piano Terrestre. Cada uma das teclas superiores controla um circuito elétrico diferente. Manipulando-as nas mais diversas combinações, um portwen profissional poderia formar qualquer padrão concebível de correntes elétricas. Os pedais logo abaixo controlam a intensidade da corrente.”

Fields assentiu distraidamente correndo seus dedos aleatoriamente pelos teclas. Alheio, ele reparou que a seta do galvanômetro acomodado ao lado das chaves oscilava violentamente cada vez que pressionava uma tecla.

“Este instrumento está realmente tocando alguma coisa?”

O Marciano sorriu, “Sim, ele está. Temo, entretanto, que neste momento trate-se apenas de um conjunto de atrozes dissonâncias.

Ele sentou-se diante do instrumento com um murmúrio. “Veja como se faz!” Seus dedos deslizaram levemente sobre as teclas brilhantes.

Ouviu-se, então, o som de uma débil voz marciana a chamar por ele num sotaque estridente. Garth Jan parou de tocar imediatamente, constrangido. “Este é Novi Lon,” disse a Fields hesitante, “Como de costume ele não gosta de me ouvir tocar.”

Fields levantou-se para receber o visitante. Seus ombros encurvados testemunhavam a idade avançada juntamente com as rugas que lhe brotavam próximas aos olhos e à boca.

“Então este é o jovem Terráqueo,” exclamou o ancião em um inglês carregado de sotaque marciano. “Eu desaprovo a sua precipitação, mas simpatizo com o seu desejo de participar de um portwem. É uma pena que você não possa fruir do nosso sentido por mais de cinco minutos. Alguém que não possua este dom simplesmente não pode viver plenamente.”

Garth Jan riu, “Ele está exagerando, Lincoln. Ele é um dos maiores músicos de Marte e acredita que qualquer um que prefira respirar ao invés de participar de um portwem está condenado à danação eterna.” Ele abraçou o velho com carinho, “Ele foi meu professor durante a minha juventude e muitas foram as horas nas quais ele lutou para me ensinar devidamente as combinações de circuitos.”

“No fim das contas parece que falhei, não é mesmo seu cretino,” retrucou o velho Marciano. “Eu ouvi a sua tentativa de tocar enquanto eu entrava. Você ainda não aprendeu a realizar corretamente a combinação de fortgass. Assim você está profanando a alma do grande Bar Danin. Meu pupilo! Bah, isso é uma desgraça!”

A entrada de um terceiro Marciano, Done Vol, impediu que Novi Lon prosseguisse com o seu sermão. Garth, agradecido pela intervenção, aproximou-se do físico rapidamente.

“Está tudo pronto?”

“Sim,” rosnou Vol grosseiro, “e se quer saber, este é um experimento particularmente desinteressante. Nós todos já sabemos os resultados de antemão.” Voltou seus olhos para o Terráqueo, fitando-o com desdém. “É este o homem que deseja ser inoculado?”

Lincoln Fields assentiu avidamente sentindo a sua boca secar repentinamente. Ele olhou para o físico e sentiu-se subitamente desconfortável ao reparar num pequeno frasco com um líquido transparente e uma seringa que o Marciano acabara de tirar da bolsa que carregava consigo.

“O que você vai fazer?” ele quis saber.

“Você será inoculado, apenas isso. Não deve levar mais que um segundo,” Garth Jan assegurou. “Veja vem, os órgãos sensitivos, neste caso, são vários grupos de células localizados no córtex cerebral. Eles podem ser ativados por um determinado hormônio, um composto sintético utilizado para estimular as células dormentes em Marcianos que nascem… como posso dizer?… ‘cegos’. Você receberá o mesmo tratamento.”

“Oh! Então os Terráqueos possuem estas células no córtex?”

“Sim, mas em um estado muito rudimentar. O concentrado de hormônios irá ativá-las, mas apenas por cinco minutos. Passado esse tempo, elas irão literalmente explodir como resultado da sua atividade fora do comum. A partir daí elas não poderão ser reativadas sob quaisquer circunstâncias.”

Done Vol finalizou os preparativos e se aproximou de Fields que, sem dizer nada, estendeu o seu braço direito, recebendo logo em seguida a injeção com o composto hormonal.

Finalizada a operação, o Terráqueo esperou um momento ou dois e então constatou rindo, “Eu não sinto mudança alguma.”

“E você não irá, pelo menos nos próximos dez minutos,” explicou Garth. “Isso leva tempo. Apenas sente-se e relaxe. Novi Lon acaba de começar ‘Canais no Deserto’ de Bar Danin, a minha favorita. Assim que os hormônios começarem a fazer o seu trabalho você entenderá as coisas por conta própria.

Agora que não havia mais volta, Fields sentiu-se surpreendentemente calmo. Novi Lon tocou furiosamente a Garth Jan, à direita do Terráqueo, parecia perdido em êxtase. Até mesmo Done Vol, o doutor mal humorado, havia abandonado a sua petulância durante a performance.

Fields riu silenciosamente. Os Marcianos ouviam atentamente, mas para ele a sala permanecia mergulhada no mais profundo silêncio, isenta de qualquer tipo de sensação. Mas e se… Não, isso não era possível, é claro… Mas e se tudo aquilo não passasse de uma grande piada? Desconfortável, ele tratou de expulsar rapidamente a ideia da cabeça.

Dez minutos se passaram; os dedos de Novi Lon bailavam; a expressão de Garth Jan refletia o mais autêntico deleite.

Lincoln Fields piscou seus olhos rapidamente. Por um momento uma auréola de cores pareceu envolver o músico e o seu instrumento. Ele não sabia exatamente do que se tratava tudo aquilo, mas estava lá, diante dos seus olhos. Cresceu e se espalhou até preencher a sala toda. Outros matizes se juntaram aos primeiros e muitos outros surgiram na sequência. Eles teciam e oscilavam; expandiam e contraíam; transformavam-se na velocidade da luz enquanto permaneciam os mesmos. Intrincados padrões de matizes brilhantes se formavam e desapareciam, explodindo em erupções de cores diante dos olhos do Terráqueo.

Simultaneamente, veio a sensação de som. Cresceu de um sussurro até transformar-se em uma majestosa harmonia que oscilava, subia e descia na escala em trêmulos vibratos. Ele parecia ouvir cada instrumento, do pífano à viola da gamba ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, seus ouvidos nada podiam escutar.

Juntamente com os demais sentidos, veio a sensação de odor. Ele sentiu como se mergulhasse num campo de flores invisíveis. Aromas delicados e vistosos se seguiram uns aos outros, cada vez mais intensos, em gentis sopros de prazer.

Ainda assim, tudo aquilo não era nada. Fields sabia disso. De alguma forma ele sabia que o que ele estava vendo, ouvindo e sentindo eram apenas ilusões, miragens de um cérebro a tentar desesperadamente interpretar uma concepção completamente nova através dos artifícios que lhe são familiares.

Gradualmente as cores, os sons e os aromas se dissolveram por completo. Seu cérebro estava começando a assimilar a ideia de que se tratava de algo completamente inédito. Foi quando o efeito do hormônio atingiu o seu ponto máximo e, subitamente, numa explosão sensorial, Fields finalmente entendeu por completo o que estava sentindo.

Ele não via, nem ouvia, nem cheirava, nem saboreava, nem sentia. Ele sabia o que era, mas não conseguia pensar em uma palavra para descrever. E então, com certa dificuldade, ele compreendeu que não havia palavra alguma capaz de explicar o que estava sentindo. E com ainda mais esforço, ele se deu conta de que não havia sequer um conceito para aquilo.

Ainda assim, ele sabia perfeitamente o que era.

Seu cérebro estava sendo golpeado por ondas de satisfação, capazes de tirá-lo de dentro do seu próprio corpo, fazendo-o flutuar através de um universo até então desconhecido para ele. Era como se estivesse caindo através da interminável eternidade de… alguma coisa. Não era um som, não era luz, mas era… algo. Algo que o dobrava, moldava, tornando-o cego para o mundo ao seu redor, é isso o que era. Era interminável, infinito em sua variedade. A cada lufada de prazer que o atingia, ele vislumbrava um novo horizonte e o manto de sensações se tornava ainda mais expeço e macio e ainda mais belo.

Então veio a dissonância. A princípio como se fosse uma rachadura numa linda obra de arte. Ela se espalhou e cresceu até finalmente partir ao meio num grande estrondo sem, entretanto, emitir som algum.

Atordoado e estupefato, Lincoln Fields deu-se conta de que ainda estava na sala de concertos. Levantou-se de súbito e agarrou Garth Jan violentamente pelos braços. “Garth! Por que parou? Diga a ele para continuar! Vamos, diga!

“Ele ainda está tocando, Lincoln”, respondeu o Marciano com pena no olhar.

O Terráqueo encarou Novi Lon, confuso e incapaz de compreender a situação. Os dedos do Marciano bailavam através do teclado, ágeis como nunca enquanto seus olhos refletiam o êxtase que queimava dentro de si. Acometeu-lhe, então, a dura verdade, preenchendo os seus olhos vazios de horror.

Ele se sentou enquanto proferia um resmungo gutural, enterrando nas mãos a sua cabeça dolorida.

Os cinco minutos haviam se passado e agora não havia mais volta!

Garth Jan estava rindo, um sorriso terrível e repleto de malícia, “Eu estava com pena de você há poucos minutos atrás, Lincoln, mas agora estou feliz! Você me forçou, me obrigou a fazer isso. Eu espero que você esteja satisfeito, porque eu certamente estou. Para o resto da sua vida,” a sua voz agora não passava de um sussurro, “você se lembrara destes cinco minutos e saberá o que está perdendo, o que você nunca mais poderá ter de volta. Você está cego, Lincoln, cego!”

O Terráqueo ergueu o seu rosto desfigurado e sorriu em vão, pois tudo o que conseguiu foi mostrar os seus dentes de forma patética. Com cada centímetro de força de vontade que possuía dentro de si, conseguiu manter a sua compostura.

Ele não confiava em si mesmo para arriscar dizer algo. Com passos vacilantes ele marchou para fora da sala, de cabeça erguida até o final.

Enquanto isso, dentro da sua mente, uma pequena voz amarga repetia vez após vez, “Você entrou como um homem normal! Você saiu cego — cego — CEGO!”

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